Hipupiára: uma lenda no original
Veja também a versão da lenda comentada por Francisco Martins dos Santos e as informações complementares de J. Muniz Jr.
Uma das mais tradicionais lendas de São Vicente é a do monstro marinho Hipupiára (aparentemente um leão marinho) e ao contrário das lendas comuns, tem até data de surgimento (1564) e registro contemporâneo, pois mereceu do historiador Pero de Magalhães Gândavo as páginas 62 a 66 de sua História da Província de Sãcta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. "Impresso em Lisboa na officina de Antonio Gonsalues" em 1576, o livro é raríssimo, pois teve circulação limitada em função das revelações que continha sobre a economia colonial, os costumes indígenas e a história natural da então colônia, que a Coroa portuguesa não desejava divulgar devido à concorrência comercial e política. Um dos dois únicos exemplares conhecidos da obra é conservado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro:
Esta é a história como foi contada pelo pesquisador Francisco Martins dos Santos, e reproduzida na Poliantéia Vicentina por Fernando Martins Lichti (Editora Caudex Ltda., São Vicente/SP, 1982):
A lenda do HipupiaraNaquele tempo, embora São Vicente fosse a sede ou cabeça da Capitania do mesmo nome, os capitães-mores ou governadores já residiam em Santos, de onde dirigiam a terra e o povo de sua jurisdição, e isso desde que Brás Cubas o fizera, em seu segundo governo de 1552. Entretanto, costumavam os capitães-mores manter na Vila Capital, para atendimentos de rotina e articulações necessárias, um capitão de sua confiança, por vezes causando complicações que obrigavam o substituto a ir a Santos, por terra, pelo Caminho de São Jorge, que era o mais curto, ou por água em circuito, seguindo pelo braço do Iriripiranga (atual Casqueiro). Era o que acontecia em 1564, quando governava a capitania o capitão-mor Pedro Ferras Barreto, que tinha sede e residência na mesma casa do Conselho ou Senado da Câmara, em Santos, enquanto fazia suas vezes na Vila de São Vicente o capitão jovem e impetuoso Baltazar Ferreira, filho do nobre Jorge Ferreira, que já fora capitão-mor e ainda o seria, pela segunda vez, pouco tempo depois. Baltazar - desde que seu irmão Jerônimo fora aprisionado e comido pelos rudes tamoios de Maenbipa e Ubatuba, num ataque à Bertioga, ocasião em que ele escapara do mesmo fim pelo heroísmo dos irmãos Braga, e tendo em vista a sua belicosidade quase irresponsável - fora afastado por seu pai, indo residir em São Vicente, fora das lutas permanentes que o porto grande representava, de ataque ou defesa. Residia o capitão Baltazar na Casa de Pedra, misto de sede de Governo, fortaleza e cadeia pública onde o donatário Martim Afonso despachara e residira, de janeiro de 1532 até maio do ano seguinte. Tinha ele uma índia escrava, que pertencia a seu pai mas estava também na Casa de Pedra, por ser pessoa de extrema confiança. Chamava-se Irecê e o servia em todos os setores domésticos. Apesar da confiança que merecia, Irecê, por ser escrava e por gostar de um escravo, que trabalhava numa fazenda do continente fronteiro, e era índio como ela, praticava fugas noturnas, para encontrar-se com seu Andirá, bem avançada a noite, na Praia da Vila, a salvo dos olhos mexeriqueiros. Apenas uma índia velha, tida como feiticeira, que vivia ali perto, no morro vizinho, sabia das suas andanças noturnas e dos encontros com Andirá, e foi ela que um dia lhe fez ver que o capitão Baltazar era um moço bom, amigo dos índios, e não ia gostar de saber que ela se encontrava com Andirá na calada da noite e que tinha na cabeça a idéia de fugir com ele para as bandas do Sul. Irecê ficara muito espantada com as palavras da feiticeira, pois não contara a ninguém aquele segredo alimentado em seu íntimo... A índia velha lhe dissera que era melhor contar o seu caso ao capitão, pedindo que a ajudasse, que lhe permitisse casar com o seu Andirá. O capitão Baltazar poderia até dar um jeito... Completando o conselho, a índia velha terminava com um aviso: - Irecê... os espíritos do mar não gostam disso, não... e, de repente, podem mandar um castigo pr'a você! Assim, naquela noite, foi com muito medo que Irecê realizara mais uma das suas fugas noturnas, para o encontro na beira do mar, parecendo-lhe ver a figura da velha espiando ou um vigilante escondido para prendê-la. Estava resolvida a contar a Andirá o sucedido e ver o que ele decidia. A noite estava muito quieta, e um vento brando e morno vinha de longe, da Ponta da Capetuba. A baía estava mansa como nunca e o céu muito claro. A vila inteira dormia, encarapitada no pequeno outeiro. Irecê já estava na praia e viu à beira d'água a canoa em que Andirá sempre vinha, mas Andirá mesmo, não estava. A índia emitiu um piado de pássaro noturno, comum entre eles, mas não teve resposta. Era estranho, muito estranho. Já ia voltar, cheia de presentimentos, lembrando-se das palavras da índia velha, e caminhava em direção ao campo de Jundú, que mediava entre a praia e o outeirinho da Vila, quando ouviu dois urros pavorosos, como de jaguar ferido, e viu em seguida, mal divisado na sombra do próprio jundú, um vulto enorme, gigantesco, que caminhava esquisitamente, os braços abertos, uma cabeça combrida e desmedida, com uma altura de quase três metros. Parecia-lhe um "curupira", um fantasma do mar ou das florestas. Parecia tudo menos gente, pelo tamanho e pelos gritos de animal que dava. Decerto era mesmo o demônio e era o castigo lembrado pela feiticeira... Irecê, toda em tremores, correu como pôde para a Casa de Pedra. Foi bater à porta do capitão, embora sabendo que ele dormia. Chorava e gemia alto, para que ele ouvisse, vencendo o medo de um tal ato. Baltazar Ferreira perguntou-lhe o que queria e não deu importância ao que ela contava apavorada. Gritou por detrás da porta que não fizesse muito barulho, que fosse ver outra vez, e ver bem, para que ele não se levantasse à toa e não fosse de espada ao encontro de uma invenção. Ai dela se isso acontecesse. Irecê ficou desesperada e, só então, viu que o capitão não estranhava porque estaria ela acordada e na praia àquela hora... Tornou a correr ao jundú, mas, por outro lado, saindo pela porta da torre de vigia, na base do outeirinho. Correu como podia ao jundú; de uma certa distância, viu o fantsma no mesmo ponto e voltou ainda mais depressa, chamando seu senhor, afirmando em voz lamentosa junto à sua porta, que era bicho horrível e gigantesco. O bicho decerto queria sangue, e ameaçava toda a vila!... Irecê pedia ao capitão que corresse enquanto era tempo... talvez fosse o demônio... e seria bom chamar os padres do Colégio para esconjurá-lo!... Irecê perdera o controle de si mesma, desatinava, e Baltazar Ferreira não tivera outro remédio. Saiu quase como estava, metendo o gibão de qualquer jeito e tomando da espada, que ficava sempre ao alcance de seu braço. A índia caminhou logo atrás dele. Quando iam atravessando o grande campo de jundú, ouviram-se novos urros e gritos roucos da aparição, e logo Batazar Ferreira viu, à pequena distância, o monstro que Irecê descrevera. - Tu tens razão - disse ele -, é mesmo coisa grande e feia!... Mas vou ver de perto!... O bicho monstruoso, parecendo adivinhar a intenção de Baltazar, pôs-se a caminhar, gingando como um bêbado em direção da praia. Com grande resolução, o filho de George [sic: correto é Jorge] Ferreira, que enfrentara a fúria dos tupinambás na Bertioga ao lado dos Bragas e de seu irmão, embora não pudesse ainda dizer que monstro seria aquele e sem acreditar muito em demônios e aparições, correu para cercar o estranho animal - que devia ser um gigante marinho, capaz de caminhar como se estivesse em pé. Desembainhando a espada de guerra, do mais puro aço de Toledo, pôs-se à frente do animal, que parecia, pelo tamanho e pela grossura, um elefante em forma quase humana, tendo os pés como se fossem barbatanas. Baltazar Ferreira raciocinou depressa. Já tinha ouvido falar de tais monstros, não no Brasil, mas na Europa, nas terras frias do Norte. Nunca os vira, pois nascera em Santos, e menos ainda em pé, naquela postura ameaçadora, como ele estava agora, roncando e dando uivos pavorosos. Segurou com força o copo da pesada espada e deu tremenda estocada à altura do ventre do bicharoco, atravessando-lhe o corpanzil. O animal fez um movimento furioso com os braços e tombou sobre o capitão vicentino, urrando com mais força e esguichando sangue. Rápido e calmo, Baltazar, sem nada ver, pela sangueira quente e grossa que lhe empretara os cabelos e descia sobre todo o rosto, saltou para o lado, deixando que o bicho se estatelasse na areia. Com os gritos de Irecê, que temia pela sorte do amo, já chegavam guardas da Casa de Pedra, escravos da vizinhança e alguns índios da base do morro. Naquele mesmo instante, corria o jovem capitão o maior perigo do seu estranho combate. O Hipupiara - que era o nome do monstro marinho, segundo disseram depois os índios, cujo significado era "demônio da água" - recobrara um pouco de energia e, num último arranco, escancarando a bocarra, entre urros, precipitava-se sobre ele, de surpresa. Baltazar só teve tempo de recuar, metendo-lhe um golpe sobre a cabeça, mais como defesa, vendo-o então arrastar-se pesadamente, como se quisesse fugir para dentro do mar. Com a chegada daquele verdadeiro socorro de homens armados, a cena terminou. Vários daqueles homens foram alcançar o monstruoso animal já nas primeiras maretas, retirando-o das águas como em agonia. O Hipupiara foi arrastado para a Vila, segundo disseram, e ali ficou exposto até o fim daquele dia, ao que consta para evitar crendices e superstições exageradas entre o povo. Conforme o relato de um dos cronistas da época, Baltazar Ferreira "saíra todavia desta batalha tão sem alento, com a visão deste medonho animal ficara tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe havia acontecido, não lhe pôde responder, e assim como assombrado, sem falar coisa alguma por um grande espaço". Perdurou por muito tempo, em São Vicente, em Santos e por todo o litoral, a lembrança, mista de horror, do fantástico Hipupiara. Estrangeiros de vários países exploraram, mais do que os brasileiros, a história do fabuloso animal aparecido naquele ano de 1564. Ninguém contudo se lembrou de perguntar ou comentar a primeira parte do pequeno drama. Ninguém falou da única vítima presumível do monstro vicentino, daquele pobre Andirá, que fora causa das fugas noturnas de Irecê, e que nunca mais apareceu, deixando como lembrança, entre o mistério e o silêncio, aquele vestígio material, a sua pequena canoa e seus pertences, à beira do mar. Em verdade, ninguém procurou saber se ele morrera - e se fora, como parecia, o primeiro e único tributo pago pela Vila ao Hipupiara. Somente Irecê, a índia de Baltazar Ferreira, a pobre heroína ocasional daqueles registros aparentemente lendários, considerou real e chorou a morte assombrada... do seu herói e quase raptor. |
Foto: Prefeitura Municipal de São Vicente em São Vicente em 1564 Colaborador De fato, desde os tempos mais remotos, predominavam incríveis relatos a respeito de criaturas quiméricas que se deslocavam pela vastidão dos oceanos, atemorizando os homens do mar. Tais narrativas falavam de tritões, sereias, serpentes marinhas e outras figuras horrendas que povoavam os mares intermináveis. Em 1560, um padre que estava na Ilha de Manar, distante 200 léguas (aproximadamente 1.200 quilômetros de Goa), foi chamado às pressas por um grupo de pescadores para ver alguns tritões e sereias que estavam presos nas redes da embarcação. Atendendo ao chamado, o religioso pôde verificar as estranhas criaturas, que tinham uma certa semelhança com os seres humanos, ostentando forma de peixe (cauda) da cintura para baixo. Um relato do livro Entretiens de Mer, editado em 1643, fala de um tritão ou homem marinho que apareceu na costa da Bretanha e, segundo pôde ser observado pelos pescadores, tinha os olhos sombrios e uma vasta cabeleira, que flutuava sobre as espáduas, além de uma barba que chegava até a altura da cintura. Ele rompeu a rede que foi atirada para capturá-lo, permanecendo com a parte inferior na água, batendo as mãos e fazendo um ruído estridente com a boca, até desaparecer sob o marulhar das ondas. Na época dos descobrimentos, antigos relatos mitológicos ainda aguçavam a mente dos navegadores e aventureiros que ousaram singrar os mares tenebrosos, sombrios e perigosos. Por aquele tempo, destemidas tripulações que guarneciam os barcos à vela cruzaram os oceanos em busca de terras incógnitas e misteriosas, sempre atentos, procurando avistar profundos abismos ou encontrar algum monstro marinho na superfície da água. Quando os navegadores portugueses chegaram ao Brasil, corria a notícia de serpentes monstruosas e de tantas outras assombrosas aberrações. Tanto é que os indígenas tinham pavor da ipupiara, que, segundo a crença, era o "demônio das águas" e que, além de paralisá-los com o olhar profundo, cingia-os com um abraço moral, arrastando-os para o fundo do mar. Na sua História da Província de Santa Cruz (Lisboa, 1575), o escritor Pero de Magalhães Gandavo conta que, no decorrer de 1564, apareceu um monstro marinho na Vila de São Vicente e que foi abatido a golpes de espada pelo capitão Baltazar Ferreira, lugar-tenente do capitão-mor Jorge Ferreira. Segundo o relato, depois de morto, o "monstro" foi arrastado da praia para a praça da vila, onde ficou exposto diante da população estupefata, uma vez que tinha cerca de 15 palmos de comprimento e umas "serdas (pêlos) muy grandes", parecendo bigodes. A luta entre a fantástica Hipupyara e o nobre capitão, reproduzida na obra de Gandavo, levou o historiador Benedito Calixto a tecer o seguinte comentário, publicado no Indicador Comercial Santista (1908): "Há, na verdade, um tanto de exagero e imperícia no desenho do monstro, que foi traçado por algum curioso, aqui em São Vicente, e corrigido pelo artista gravador em Lisboa, que humanizou a figura de Balthazar Ferreira e (o gravador) marcou, no fundo da gravura, com minúcias e nitidez, uma parte da Vila de São Vicente, com seus edifícios e templos, um tanto fantasiosos e arbitrários". Para o naturalista Charles J. Cornish, o monstro marinho poderia ser um lamantino da América, conhecido como lobo ou leão-marinho, com as seguintes características: "Cauda arredondada, nadadeiras com unhas externas, duma independência e energia notáveis (...) O corpo semeado de pêlos curtos. Não tem sete vértebras cervicais, como todos os mamíferos, e sim, seis. A natureza da alimentação e a estrutura dos dentes indica que os serênicos têm o hábito de ruminar..." Na época atual, os turistas e visitantes podem andar tranqüilamente em São Vicente sem receio de encontrar o decantado "demónio das águas". Isso, apesar de alguns pingüins, focas, leões e outros pequenos seres marinhos surgirem de vez em quando, trazidos pelas correntes marítimas e que, devido aos ferimentos ou exaustão, são acolhidos em terra. O certo é que os forasteiros poderão desfrutar de um belo e aprazível recanto denominado Parque Ipupiara, que abrange, inclusive, a tradicional Praça da Biquinha. (*) J. Muniz Jr. é jornalista, pesquisador de História, escritor e Amigo da Marinha (1983). |
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