O sábio estava sentado no topo da montanha. Emanava de sua
constante meditação as formas-pensamentos que, acreditava, ajudavam a todos os
humanos que viviam aos pés da imensa formação rochosa.
No vilarejo, aos pés da montanha conhecida pelo nome de Montanha
do Deus, os singelos habitantes viviam de orações e do cultivo de algumas
leguminosas e cereais. O Deus da montanha nunca deixava de prover e
atender as ininterruptas orações. Todos acreditavam na imortalidade e na
eternidade da benévola deidade.
Menos Sabrina.
A jovem carregava em seu coração a latente suspeita da
inexistência de um deus no topo daquela montanha. Nunca revelou sua
inquietação, pois rebelar-se contra o Deus era crime punido com morte em
um sacrifício ritual. Fim que Sabrina não desejava para si e para ninguém. Com
toda certeza não duvidava dos milagres e das bênçãos, mas questionava a
necessidade de ser fruto de alguma vontade superior residente no topo daquela
montanha. Por isso havia resolvido colocar seu plano em prática.
Como previa a tradição milenar do vilarejo, a oração ao Deus
da Montanha não deveria ter término nunca. Por isso os habitantes se
revezavam de hora em hora no posto de mantenedor
da oração perpétua. Havia uma cabana afastada da vila, no início da íngreme inclinação de terra
que formava os pés da montanha, onde um
membro da comunidade se isolava e dava continuidade à oração. O posto e a oração eram mantidos todos os dias e
durante as três partes do dia. Todos os moradores eram obrigados a se revezar,
dos quinze aos setenta anos – a faixa de idade em que era obrigatória a
ocupação do posto.
Aquela noite, na primeira hora da terceira parte do dia, o
posto foi ocupado por Sabrina.
A garota esperou que o mantenedor anterior estivesse se
afastado o suficiente e abandonou o posto, correndo com todas as suas forças
rumo ao topo da montanha. Inspirava fundo. Ofegava. Lançava-se com toda
determinação, pegando impulso ao projetar o corpo com a ajuda dos resistentes
braços que a alavancavam a partir dos arbustos e pedras que apareciam no
caminho. Se pudesse sanar sua dúvida e levar a certeza para os moradores do
vilarejo, com certeza seria perdoada e não sofreria o castigo.
Chegou, enfim, no topo.
Lá encontrou um homem magro, quase cadavérico, sentado de
pernas cruzadas, cabelos e barbas tão compridos quanto o esquelético corpo – da
onde brotavam os fios. Apenas uma tanga branca a cobrir suas intimidades. Abriu os olhos.
– Então é verdade! – exclamou a garota. – Você é o deus da
montanha... Você existe!
– Deus? – uma voz rouca e quase inaudível. – Da montanha?
– Isso mesmo – sorriu a jovem. – Você realmente existe!
– Eu existo, de certa forma – agora o homem deixou um
sorriso escapar. – Mas não sou, de forma alguma, Deus.
– Como assim? – Sabrina ficou confusa.
– Sou apenas um homem. Mortal como qualquer outro.
Simplesmente medito neste local em agradecimento aos habitantes do vilarejo
abaixo, que me salvaram das feridas que sofri de um ataque de dragões do
umbral.
– Mortal? – ela estava em choque. – Minha família e todos os
moradores da vila o cultuam como um deus há milênios! E dragões do umbral foram
extintos há séculos!
– Séculos? Milênios? – disse o homem.
– Sim! – exclamou a jovem.
– Não pode ser, fui curado recentemente por Amônio. O xamã
de seu povo...
– Amônio é bisavô do bisavô do bisavô de meu avô! – Sabrina
tremia de nervoso. Como isso pode estar certo, ela se questionava.
O homem pôs-se a meditar por um curto período.
Respondeu.
– Talvez o veneno dos dragões, que foi absorvido por meu
corpo, tenha aniquilado o tempo em mim. Sou apenas um siddhartha. Simplesmente
medito em agradecimento. Nada mais.
Sorriu.
Aquele sorriso derrubou Sabrina com a força de uma
avalanche. E assim ela caiu até o início da montanha. E lá os moradores do
vilarejo a esperavam. Com tochas em chamas e fogo nos olhos. Ela se levantou.
Toda machucada e arranhada pela queda. Demorou um pouco para se recuperar.
– A incrédula interrompeu a oração e foi castigada pelo
deus! – alguém berrou.
– Não! – ela disse, meio tonta.
– Devemos sacrificá-la e nos redimirmos perante nosso deus!
– outra voz inflamou o vilarejo.
– Bruxa! – a turba começou a gritar seguidas vezes.
– Bruxa!
Sem ter uma oportunidade sequer para se explicar, Sabrina
foi apedrejada pelos seus parentes e conhecidos. Amarraram e a jogaram dentro
de um poço. O poço dos sacrifícios. Jogaram óleo sobre ela e atearam fogo.
Sabrina gritou.
E gritou.
A dor e o desespero da jovem subiram a escada formada pela
fumaça de seu sofrimento e atingiram o topo da montanha. Lá as narinas do homem
foram bombardeadas com o cheiro de carne queimada. Com o cheiro de um ato cruel
e irreparável.
Olhos draconianos despertaram.
Eram os olhos do siddhartha que ganhavam a forma de olhos
reptilianos.
E, após séculos, um novo dragão do umbral surgiu. Do topo da
montanha a criatura, colossal e aterrorizante, mergulhou em direção ao
vilarejo. Tomou a vida de cada um dos habitantes e chorou pela crueldade
cometida contra a jovem buscadora da verdade.
Uma lágrima dracônica caiu sobre as cinzas do que um dia
fora Sabrina. E como uma fênix ela renasceu. Sabrina estava novamente viva.
Apenas uma coisa não havia renascido, a sua complacência para com os seres
humanos. Ela olhou para o Dragão. O Dragão olhou para ela.
Um meteoro atingiu o lado escuro do planeta.
Da união entre mulher e dragão a magia nasceu. E a trindade –
mãe, pai e vontade – espalhou pelo mundo o terror sobre todos aqueles que
cultuavam e matavam em nome de falsos deuses.
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